EQUIDADE: O QUE SIGNIFICA ESSA PALAVRA

Durante meu curso de Direito, lá no século XX, em fins dos anos 60 e início dos 70, conheci a palavra equidade e fiquei bastante intrigada com a pouca importância que lhe era dada. Para mim tratava-se da palavra-chave para a realização e distribuição de justiça. Graduei-me, advoguei por um tempo, depois fiz concurso público e fui aprovada para exercer o cargo de Promotora de Justiça. Nessa trajetória toda, pude perceber que eram poucos os profissionais da área jurídica que se davam ao trabalho de entender a profundidade contida na palavra equidade. Preferem usar, à torto e à direito, a palavra igualdade que é prima-irmã da equidade mas não significa a mesma coisa.

Hoje estou aposentada e continuo intrigada com o desprezo geral ao real significado dessa palavra. Por isso resolvi escrever um pouco sobre ela, pois penso que todos deveriam conhecê-la melhor e aplicá-la no cotidiano. Tentarei não aborrecer ninguém e por isso não usarei o “juridiquês”, ou melhor, o jargão jurídico. Mas terei de reportar-me aos romanos pois foram eles que nos ensinaram o Direito e que criaram a palavra “aequitas” e “aequus” que em latim (uma língua da antiguidade) significa igual e equitativo; segundo o povo romano “aequitas sequitur legem” ou seja, a equidade acompanha a lei. Eles, os romanos, tinham um ditado que dizia o seguinte: “ Summum ius summa iniuria”, que significa “Perfeita justiça perfeita injustiça”. Queriam dizer com isso que, se aplicarmos a lei rigidamente sem prestarmos atenção às condições reais dos envolvidos no processo judicial ou administrativo, poderemos cometer injustiças.

Certamente, foi inspirando-se nesse pensamento que a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657 de 04 de setembro de 1942) prevê no artigo 5º que: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Essa lei nos serve como uma diretriz e/ou regra geral para a interpretação de qualquer norma jurídica vigente no Brasil. Nosso Código de Processo Civil, por exemplo, disciplina o emprego da equidade dizendo, no seu artigo 127, que:  “o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”.

Bem, mas não devemos nos esquecer que nosso mestre Rui Barbosa deu-nos uma bela lição do que significa equidade. No texto que escreveu para o discurso aos formandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito de SP, obra conhecida como “Oração aos Moços”, ele diz o seguinte: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real“.

Se você pesquisar num bom dicionário da língua portuguesa, certamente encontrará o significado dessa palavra. No dicionário Houaiss, por exemplo, poderemos ler: “julgamento justo; respeito à igualdade de direito de cada um, que independe da lei positiva, mas de um sentimento do que se considera justo, tendo em vista as causas e intenções.”  O antônimo de equidade é iniquidade, que significa, portanto, aquilo que é contrário ao que é justo: injustiça, desigualdade, desvantagem.

De uma forma ou de outra, sabemos que a questão da igualdade de oportunidades ainda é uma utopia para a população brasileira, notadamente se considerarmos as carências e a falta de qualidade no ensino fundamental no Brasil. As pessoas com instrução escolar deficiente não conseguem dominar o vocabulário básico da língua portuguesa e, daí surge a dificuldade da leitura que provoca o sentimento de vergonha. A pessoa se sente inadequada nos ambientes públicos e por isso não reivindica seus direitos.

Por isso acho que é imprescindível o tratamento com equidade, que poderíamos conceituar como a aplicação da lei acrescida do sentimento do justo. Todos são iguais perante a lei, porém aquele que mais necessita deverá ser atendido primeiro, como vemos nos casos que envolvem crianças e adolescentes ou pessoas idosas e/ou com alguma enfermidade ou deficiência, que devem ser tratadas socialmente com prioridade. Aqui se trata de regra de equidade.

Para minorar as graves conseqüências provocadas pela falta de conhecimento, muitas organizações da sociedade civil (as Ongs) contribuem oferecendo à população de determinadas comunidades, conhecimentos indispensáveis ao exercício da cidadania. São ações de equidade e solidariedade social. Por outro lado, o Estado investe nas ações afirmativas e/ou cotas com a intenção de alavancar socialmente grandes contingentes humanos de excluídos, tais como a população constituída de negros, indígenas e de imigrantes latinos americanos. São atitudes que servirão para acelerar a conquista da igualdade social. Oxalá isso aconteça de fato e aí então poderemos dispensar a reserva de cotas. No momento não podemos considerar iguais socialmente aqueles que, visivelmente, são vítimas da nossa pornográfica desigualdade social.

Antes de finalizar, gostaria de registrar aqui uma manipulação cruel que vem sendo feita por pessoas que não têm nenhum compromisso com a equidade. É fato que durante muitos séculos os cientistas – equivocadamente – classificaram a humanidade em raças. Milhões de pessoas estudaram nos livros e bancos escolares que existiam raças: raça negra, raça branca, raça amarela, raça vermelha etc que significava a separação das pessoas baseando-se pela cor da sua pele. Era considerada correta essa interpretação científica à época. Daí surgiu a expressão “racismo” que, como todos sabemos, significa discriminar e ter preconceito social para com as diversas “raças” : negros, índios, e determinadas etnias tais como ciganos, latinos, asiáticos etc. No Brasil de hoje a prática de racismo é considerado crime.

Hoje, felizmente, estamos aprendendo que os cientistas cometeram um erro e que, com o avanço das pesquisas,  conclui-se cada vez mais que humanidade é composta pela raça humana – uma só – e que nela se incluem todos os seres humanos, independentemente da cor de sua pele e oriundos de quaisquer etnias. Se bem que esta nova visão científica não tem sido bem aceita por muita gente ainda. Mas os fatos são esses. Só o tempo as convencerá.

Pois bem, não é que agora, para prejudicar mais ainda aqueles que já foram prejudicados por toda vida por serem de outras “raças”, tais como negros ou indígenas, surgiram na mídia uns cultos senhores e senhoras que vêm à público dizer que, se já descobrimos que não somos divididos por raças, por que então as cotas sociais para negros e indígenas? Esquecem as injustiças – iniquidades – cometidas no passado. Vejam o jogo que estão fazendo para embaralhar o raciocínio de muitos e impedir a aplicação da equidade social.

Isso é que eu chamo de manipulação perversa com as palavras ou puro oportunismo para causar espetáculo. Na linguagem dos jovens, “eles se acham”. Para os gregos antigos seriam classificados como sofistas, aqueles mestres pouco preocupados com a verdade e que em seus discursos usavam argumentos ardilosos.

Inês do Amaral Büschel, em 21 de março de 2010.